Amoreira.

Stella Monteiro
5 min readOct 17, 2020

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Há alguns dias vi, de longe, uma mulher puxar com firmeza um galho de amora na rua. Sem vasilhas nas mãos, ela trouxe o galho para perto de si até que as amoras mais pretinhas ficassem ao alcance da mão, arrancou algumas e continuou a andar. Posso imaginar como estavam gostosas aquelas frutinhas gratuitas, tão lindas.

Naquela manhã muito quente e seca de um Outubro como nenhum outro, experimentei a falta. Tenho certeza que compartilho dessa experiência com muitas pessoas, felizes ou miseravelmente tristes. Talvez por não estar mais ou por nunca ter estado ali, uma pessoa, época ou coisa nos incomoda. Horas antes de acordar sozinha nessa manhã de segunda-feira, havia decidido enfim ceder a algo que eu sempre soube sobre mim, mas que neguei não só nas últimas semanas, mas por anos a fio: uma insatisfação implacável mora dentro de mim. Mal meus pés tocaram o chão pela manhã e de joelhos pedi a Deus que me ensinasse a encarar aquele dia como uma dádiva.

“Obrigada, Senhor, por usar com misericórdia e amor os eventos da minha vida a meu favor, transformando em bem o mal que faço a mim e aos outros.”

Me levantei trôpega, mas certa de que Deus me sustentaria aonde quer que eu fosse, mesmo que só até ali bem perto de casa. Depois de cruzar com aquele pé de amora recém colhido pensei como é incrível que uma amora — essa gotinha de oásis — brote no deserto que Brasília parece ser nessa época. Eu não o plantei ali e a mulher, agora com os dedos manchados de roxo, certamente não se preocupou em regar aquela árvore. Sem se importar com isso, ela se deliciou com amoras que não viu crescer e eu passei pela sombra de uma árvore bem mais alta que eu, que certamente não verei morrer.

Não foi intencional lembrar de Êxodo 16, quando Deus decidiu alimentar seu povo em meio a um deserto que eu imagino ter sido tão quente quanto o Parque de Águas Claras naquela manhã, mas bem mais assutador e inóspito. Libertos depois de longos anos da escravidão e de um lider autoritário, o povo de Deus foi conduzido ao deserto de forma heróica, digna de filme diga-se de passagem. Mas mal o calor chegou aos seus pés e seus lábios já estavam prontos para reclamar da falta. “Vamos morrer! Melhor seria sermos escravos a morrermos de fome no deserto.” Misericordioso e bom, ao Senhor agradou alimentá-los miraculosamente no meio do deserto (o que é mais difícil que fazer brotar amoras no cerrado ou que conceder um emprego, por exemplo) sob a condição de que não guardassem para si mais do que poderiam comer, ou guardassem um extra para o próximo dia. Diária e repetidamente, o povo deveria apenas colher o que, dos céus, Deus lhes dava sem que merecessem. No dia anterior ao de descanso, eles poderiam colher o dobro e assim, teriam o suficiente para que pudessem descansar de verdade, sem colher nada no dia seguinte.

Observei nas últimas semanas a tendência do meu coração a desobediência. Insatisfeita sempre, quando Deus pede que eu dependa dele diária e repetidamente, temo a falta e escolho garantir sozinha que meus problemas e faltas sejam resolvidos, guardando as migalhas que caem da carreira, de um relacionamento amoroso, de uma amizade ou projeto de vida para o dia seguinte. Quando ele me pede que eu descanse, colhendo o dobro e arregaçando as mangas para fazer crescer minha empresa, melhorar meu relacionamento familiar e me engajar no Seu serviço, me deito preguiçosa e dou de cara com um campo sem o que colher. Me vejo desesperada, tentando de todas as formas vencer quando poderia estar descansando, gozando daquilo que Deus disse que me daria gratuitamente.

Não andei para muito longe do pé de amora até que meus olhos estivessem marejados. Uma pequena amora pretinha me colocou diante da enorme insatisfação do meu coração e eu cedi. Confessei que não foram poucas as vezes que acumulei mais do que precisava. Insaciável, me lambuzei com exagero de prazeres que deveriam ter sido experimentados em gotas pequenas como amoras e que, por isso, me fizeram passar muito mal. Não poucas vezes o Senhor me ofereceu bens (pessoas, oportunidades, dias e horas de vida saudável) ao alcance da minha mão, os quais eu desprezei. Afinal, o que realmente me falta? Responda-me, se você puder. Suspeito que o mesmo que faltou ao povo — que, inclusive, foi alimentado por toda a trajetória de 40 anos no deserto, sem que nunca nada lhes faltasse — obediência e paciência; confiança diária e repetida no Deus que faz brotar amoras no cerrado, pão e carne no deserto e vida em corações de pedra.

Sem saber, aquela moça me lembrou da obra de Cristo, o fruto eternamente doce que Deus nos oferece no meio do deserto. Em um mundo inóspito e quebrado, aprouve a Deus conceder sombra e alimento ao seu povo, que ele chama para vir até ele mesmo. Diferente do que fez a moça dos dedos sujos de amora, eu não precisei envergar o galho da Salvação em minha direção. Ele veio até mim e colocou amorinhas pretas e doces de perdão ao alcance da minha mão, enquanto Cristo comeu o amargo fruto dos meus pecados em meu lugar. Boa comida, bebida, companhia e oportunidades são frutos doces, mas secundários dessa árvore que ele nos concede por graça. Dessa árvore, me basta passar e pegar apenas o que preciso diária e repetidamente. Não há necessidade de vasilhas, não há pra que exagerar na dose. O que Deus me dá hoje me basta e amanhã, nada me faltará. Meus dedos estão manchados de amora, mas meu coração está limpo, vivo de fato — nada me falta.

Acordei na manhã seguinte e lá estava a amoreira. Firme, mais alta que eu. Sua sombra me resfrescará e seus frutos estão me aguardando, como todo dia estarão. Eu estou pronta para comer apenas aquilo que me basta e continuar andando. Posso imaginar quão gostosas são essas frutinhas gratuitas, tão lindas.

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Stella Monteiro

pés descalços, bilhetes escritos à mão, café, prosa boa, Cristo e pão.