Cartas para Jurema #2

O medo é um sentimento que com dificuldade aprendi a identificar em meu coração, Vó.

Stella Monteiro
3 min readJun 3, 2021

Muitas vezes o chamei de vergonha, preguiça, instinto, esquecimento, ambição ou ciúme. Não é que nesses 29 anos de vida — veja só, Vó, tenho 29 anos! Não é legal? — eu não tenha vivido situações profundamente embaraçosas ou me entregue a vontade de fazer vários nadas enquanto meus prazos corriam. Sim…esqueci compromissos dos mais diversos, estive com a vida em perigo e agi por ambição e ciúme, mas na verdade todas essas ocasiões e fatos, pecados mesmo, escondem um medo real e muito mais profundo.

Você não deve ter tido tempo ou a oportunidade de ouvir o Lenine, né? A carreira dele começou em 1979, quando ele tinha 20 anos, e eu acredito que você tinha uns 40. 27 anos depois, ele escreveu uma música cujos versos muitas vezes descrevem o que sinto:

“Tienen miedo del amor y no saber amar/ Tienen miedo de la sombra y miedo de la luz/ Tienen miedo de pedir y miedo de callar/ Miedo que da miedo del miedo que da”

Essa contradição não é só aparente. A letra, e os meus medos reais, se apresentam nessa lógica. Ora me pressionando a agir, ora me paralisando totalmente.

“Tenho medo de gente e de solidão/ Tenho medo da vida e medo de morrer/ Tenho medo de ficar e medo de escapulir/ Medo que dá medo do medo que dá”

Fato é que todas essas circuntâncias oferecem riscos. Não estamos seguros em lugar algum e todos experimentamos esse medo natural dos perigos da vida. A morte, a dor e o sofrimento nos espreitam e nenhum segundo de vida, ou conforto nos é garantido. De forma lógica, faz sentido ter medo e fomos biologicamente programados pra isso. No entanto, sinto um medo que não pode ser chamado de instinto: “medo de passar em branco”; “medo de morrer na praia depois de beber o mar”; “medo de perder a vez”. Errar, ser infeliz e não ter sentido em minha vida, eis os medos que se escondem por trás dos prazos que descumpri, das concessões que fiz e das oportunidades que deixei passar. Em suma, medo de não ser; medo do vazio.

O Guilherme de Carvalho, em sua palestra no L’Abri, “O cristão e o medo” expõe como esses medos são obras de um medo existencial que nos aponta a nossa finitude. Ele nos chama atenção para a nossa reação diante desse medo existencial, inevitável como é o fato de que somos finitos: ou nos distraímos, ou nos agarramos em ídolos que acreditamos que nos socorrerão. Em novembro de 2019, prestes a encarar o medo da morte bem de frente na pandemia do novo coronavírus sem saber, falei no Amigos de L’Abri com base nessa palestra. Eis as minhas palavras de oração escritas antes de formatar meu resumo:

Senhor,

Entrego a ti meu intelecto, minhas emoções e minha alma. Sei que o Senhor vê nitidamente o meu pecado, mas por Teu amor e graça, eu creio que o Senhor vê o Teu filho Jesus e me aceita pelos méritos dele. Não quero aceitar essa graça levianamente, por isso te peço que sonde meu coração e me ajude a mudar os meus hábitos. Muda também, senhor, a fidelidade do meu coração. Eu confesso diante de ti que tenho medo. Medo da morte, medo da solidão, medo da insatisfação, medo do desprezo. Por isso me entrego tantas vezes aos meus ídolos. Te peço perdão mais uma vez e peço que o Senhor me conduza ao verdadeiro arrependimento.

O remédio para o medo, diz o Guilherme, é bem amargo. Ele nos aconselha, Vó, a olharmos bem nos olhos dos nossos medos ao invés de fingir que eles não existem. Hoje em dia muito se fala em viver corajosamente enquanto os outros se escondem, numa quase tentativa de minimizar os riscos reais que a vida possui. Não sei que tipo de blindagem essas pessoas dizem ter, mas o mundo que Deus fez e nós estragamos, é mesmo assombroso. Eu posso falhar de todas as formas possíveis e estou diariamente exposta ao esquecimento e a irrelevância. Ainda que eu seja uma pessoa dedicadíssima, honrosa e reconhecida por muito anos por isso, eu sou como uma erva que hoje é e amanhã já não é mais. Os nomes já quase apagados dos que amamos gravados em lápides me lembra isso, Vó. Somos pó e é inútil crer no contrário. Ainda que seja amargo, preciso me lembrar e novamente confessar o quanto eu sou finita.

— continua.

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Stella Monteiro

pés descalços, bilhetes escritos à mão, café, prosa boa, Cristo e pão.