Cartas para Jurema #1

Nos desencontramos como quem por ter esquecido algo em casa perde o ônibus por alguns poucos minutos.

Stella Monteiro
3 min readMay 15, 2021

Você foi embora e, logo depois, eu cheguei. Escrevo, portanto, para te contar minhas histórias — que eu insisto em fazer minhas, mas que fogem do meu controle como o ônibus que eu perdi por descuido — e assim aprender e registrar quem é Stella, sua neta.

Você não sabe, mas não perdi apenas ônibus por descuido. Já muitas vezes a mão de Deus me livrou de acidentes, desgostos, advertências e infortúnios por milésimos de segundo. Em alguns desses eventos eu percebi nitidamente que se não fossem esses pequenos espaços de tempo na eternidade que me afastaram de sofrer as consequências da minha preguiça, negligência e irresponsabilidade, eu estaria morta ou muito ferida — emocional e fisicamente. Mas não ignoro que o número desses livramentos é muitíssimo maior do que o que consta no meu registro. A boa mão do Senhor, essa a quem atribuímos a maneira esplêndida como Deus costura perfeitamente os eventos da nossa vida, certamente fez mais em me guardar, me proteger e me colocar no tempo e lugar certos do que posso contar.

Mas, é curioso, vó, que Deus também aparentemente reteve seu cuidado. Muitas vezes os segundos não foram suficientes. O mal me acometeu e eu tropecei, bati o carro, vi e ouvi o que não gostaria, perdi prazos, vôos e ônibus e em queda livre me espatifei. Sei que em alguma medida você ficaria triste em me ver sofrer. Mas, não se preocupe: apesar do que muitas vezes imagino, nenhum desses males me destruiu completamente. Os carros foram arrumados — mãe, Deus sabe o quanto você já gastou comigo; eu agradeço constrangida — , as feridas se fecharam e as dores e infortúnios eventualmente deixaram de doer no coração e na alma. Até aqui, não me sobreveio mal que eu não pudesse suportar. Mas veja, vó: não consigo dizer o mesmo no olho do furacão. Sinto, quando Deus escolhe não me poupar de algo ruim que me acontece ou que eu mesma posso fazer, que serei irremediavelmente acometida de algo que mudará pra sempre a minha vida. Desde o erro mais simples, a pior das desgraças possíveis, sinto que as coisas são irremediáveis. Tenho lutado contra essa forma de enxergar a vida, mas saiba que sua neta é hoje uma otimista apaixonada, mas incapaz de esperar o tempo e seu Senhor fazerem as coisas se tornarem novas, restauradas.

Talvez seja esse o meu desafio, vó, esperar o tempo certo de todas as coisas encontrarem o fim para que foram destinadas. Hoje, quando olho pra trás e vejo o ônibus que perdi, sei que esperar o próximo me permitiu fazer um amigo sentado no banco ao lado. Mas, nem sempre vejo o lado bom de ter perdido algo, cometido um erro ou ter sido acometida por uma desgraça. Não imagino que Deus espere que eu sempre consiga ver, mas tenho certeza que ele pode me capacitar para confiar em sua boa mão mesmo quando nada fizer sentido.

Grande foi o infortúnio de termos nos desencontrado, vó. Mas até aqui o Senhor me ajudou e estamos bem. Ao nos reencontramos espero poder contar finalmente como foi perder tantos ônibus sem você e cada cicatriz de todos os tombos que eu levei. Em cada uma dessas histórias ficará nítida a mão do Senhor ajustando cada minuto sem se esquecer de mim, já que ele não é apenas Senhor do Tempo, mas também o motorista do Ônibus da Minha Vida, o Engenheiro do Trânsito e o verdadeiro dono dessa cabeça oca que vive esquecendo coisas antes de sair de casa.
Com amor,
Stella.

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Stella Monteiro

pés descalços, bilhetes escritos à mão, café, prosa boa, Cristo e pão.