Cartas para Jurema #3

Hoje reli uma carta antiga pela milésima vez, Vó.

Stella Monteiro
4 min readJul 22, 2021

Sobre cartas, devo dizer que ando bastante lenta pra escrevê-las a você. Não que eu não tenha o que te dizer, muito pelo contrário. É que tem sido desafiador digerir tudo; contar ainda mais. É impressionante como elas, as cartas, ainda que permaneçam inalteradas, com o passar do tempo revelam novas coisas sobre o passado e o presente quando você as relê, você não acha? Na tentativa de voltar a te escrever, escolhi reler aquela carta que mencionei, de tempos atrás, mas que eu quase sei de cor. Ela era de um marinheiro cansado em seu navio parado em um porto, mas prestes a zarpar novamente.

Quando a li pela primeira vez, temia que cada linha daquela carta fosse a última. Li devagarinho, alongando cada palavra a fim de postergar aquele adeus. Achei que já sabia tudo sobre aquela carta e sobre mim mas, ao passar os olhos hoje por suas linhas quase sem precisar realmente lê-las, pareceu-me que as palavras da carta é que me leram e eu vi algo que não estava antes ali.

Eu nunca viajei de navio, Vó. Aqui no cerrado a água corre de cachoeiras, brota de repente entre as pedras e vira corredeira, mas não preenche o horizonte como faz o mar que você deve ter conhecido bem. Talvez por essa falta de costume, passei bem mal uma vez, mas nunca embarquei por longas distâncias. Imagino que me causaria incômodo olhar para todos os lados e ver apenas água, nenhuma referência. Por essa razão, sempre me identifiquei mais com o porto que com a embarcação ou seus marinheiros. Valorizo muito o lugar seguro de descanso e reabastecimento, o refúgio, a firmeza e a estabilidade dos quais o porto é símbolo e, de fato, era assim que aquela carta me identificava: um porto. Me lembro de ler isso pela primeira vez e me sentir muito importante. Logo eu, feita de madeira frágil, servindo de atracadouro para um navio imenso e sendo lugar de refúgio de seu bravo marinheiro.

Entendo o valor que o porto tem. Enfim pisar em terra firme, deve ser um alívio — um bálsamo para todo o corpo e o coração. Sei que não é difícil se sentir embarcado em um mar revolto, pois mesmo em terra firme é assim que me sinto muitas vezes: internamente uma tempestade, fora tudo oscilando como as altas ondas do mar. Somos levados de um lado para o outro pela demandas dos outros, nosssas próprias expectativas e sonhos e assim, sei bem como é prazeroso poder estar em um lugar ou ter alguém que faz o mar e sua rebeldia ceder.

Hoje reli aquela carta, Vó. O balanço que essa releitura me causou misturou náusea e saudade em um sentimento só e percebi que eu não quero ser esse porto para ninguém; não poderia sê-lo. Mas, não só por incapacidade. Eu, que sempre detestei despedidas, não quero ser um ponto fixo no mundo por onde se passa, onde se come e bebe com alegria, onde se recosta a cabeça para dormir, mas que logo vira cenário de choro, mesmo que de amor sincero. Quero, ao contrário, mergulhar profundamente em tudo que houver para ser vivido: dor ou alívio, alegria ou tristeza. Quero ver e atravessar cidades grandes e pequenas vilas; quero comer o que ali se oferecer e deixar doçura por onde eu passar. Quero cuidar e ser cuidada por quem eu encontrar, mas com a firme certeza de que meu repouso verdadeiro não está ali. Com dificuldade consigo dizer o que quero, mas disso estou certa: seja incerto o quanto e o que for, mesmo que venham encontros e despedidas, quero embarcar para longe ou perto, sozinha ou acompanhada, mas, eu não sou um porto.

Em um dia que o mar estaria revolto, Jesus e seus amigos escolheram o mar e não o porto para estarem juntos. Diferente do que se espera, Jesus escolheu aquele lugar instável para descansar. Não julgo os amigos dele que logo se desesperaram, pois eu teria me agarrado em alguma parte do barco, chorado como um bebê e questionado a brilhante ideia de ir para o mar no primeiro balanço mais forte. Não é curioso, Vó, que Jesus deite-se para dormir no meio de uma tempestade? Que paz é essa que o mantém adormecido, quem sabe sonhando com seus amigos e todo o seu povo redimido, sem pecado e sem lágrimas, mesmo enquanto eles mesmos padecem de medo? Não é difícil que pensemos haver alguma indiferença em sua atitude. Mas, (essa linda palavra!) nos enganamos em pensar que Jesus adormece silente por indiferença, incapacidade ou descrença. Essas são posturas tipicamente nossas diante do mar que daqui do porto avisto. Cristo adormece, mas basta que se levante e uma só de suas palavras acalma o mar. Não é esta a companhia que se deseja para velejar no descohecido?

Hoje o céu está bem azul, Vó. É um lindo dia para embarcar. Mas, o que será que me aguarda mais a frente quando perder de vista o porto que hoje abriga e apazigua minhas dúvidas e inseguranças? Nessa embarcação vejo muito pouco: um pouco de estudo, algumas economias, um corpo que melhora de condição mas que não será jovem para sempre e poucos pertences. O que mais importa, no entanto, não vejo com meus olhos, mas pela fé. Não mais adormecido e à frente do barco, vivo e poderoso está o meu amigo e salvador Jesus; não vou só. O porto é um bom lugar, mas estou firme como uma rocha mesmo navegando no mais profundo mar se comigo Ele está.

Envio notícias de longe, Vó.
Um abraço apertado,
Stella.

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Stella Monteiro

pés descalços, bilhetes escritos à mão, café, prosa boa, Cristo e pão.